O importante papel da democracia digital para as inovações democráticas
No Brasil, o ambiente digital é uma das principais plataformas de iniciativas de transparência, participação e deliberação online. No âmbito federal, podemos destacar o Portal da Transparência, o Portal e-Cidadania do Senado Federal e o projeto e-Democracia da Câmara dos Deputados. Em escala municipal, orçamentos participativos digitais inovaram a participação política local em diversas cidades. Assim, a internet e a democracia digital se cruzam com as inovações democráticas.
Caso não esteja familiarizado com o termo, inovações democráticas são instituições e processos que, como o nome sugere, são novidade em algum aspecto das políticas públicas com o propósito de “reimaginar e aprofundar o papel dos cidadãos nos processos governamentais aumentando as oportunidades de participação, deliberação e influência” (ELSTUB, ESCOBAR, 2019, p. 11). Nesse sentido, o papel da democracia digital e da e-participação em relação a inovações democráticas também tem sido alvo de debates: a democracia digital pode ser considerada um tipo de inovação democrática?
Em “Democratic innovations: designing institutions for citizen participation”, Smith (2009) inclui a democracia digital como um tipo próprio de inovação. Segundo o autor, a família da e-democracia é caracterizada pelo uso de tecnologias de informação e comunicação (TICs), variando drasticamente seus formatos (SMITH, 2009, p. 29). De fato, considerando os outros tipos de inovação democrática descritas por Smith, tais como assembleias populares e legislação direta, podemos observar iniciativas de democracia digital que, se não fossem realizadas em ambiente online, poderiam facilmente se encaixar em outros tipos.
Assim, pode-se perguntar: por que pensar a democracia digital como uma família de inovação democrática se dentro dela encontramos a contraparte digital dos outros tipos de inovação? Por que, por exemplo, orçamentos participativos e orçamentos participativos digitais pertenceriam a famílias diferentes? Nesse sentido, a internet não funciona mais como um meio do que como uma família em si?
Stephen Elstub e Oliver Escobar (2019) constroem uma tipologia de inovações democráticas que não inclui a e-democracia como um tipo, mas traz a e-participação como um elemento fundamental para entender inovações democráticas hoje. Elstub e Escobar não consideram a democracia digital como uma família de inovações democráticas uma vez que o único fator que unifica iniciativas digitais no geral é o meio utilizado: no caso, a internet.
Os autores separam as famílias de inovações democráticas a partir de certas características: tipo de participação, método de seleção de participantes, método de tomada de decisão, extensão de poder e influência dos participantes, área das políticas públicas, estágio do ciclo de políticas públicas e nível de governança, como visto na figura abaixo (ELSTUB, ESCOBAR, 2019, p. 23). Para todos esses fatores a participação online é muito ampla, como podemos notar vendo a tabela 1. Ela pode abarcar diversos métodos de seleção e tomada de decisão, variados tipos de participação e a extensão de poder e influência é variada. Além disso, pode aparecer em qualquer área das políticas públicas em variadas etapas do seu ciclo e pode ser utilizada em diversos níveis de governança.
Figura 1: Estrutura de inovações democráticas segundo Elstub e Escobar (2019)
Fonte: Elstub e Escobar (2019)
Ainda assim, Elstub e Escobar (2019) consideram a e-participação como um elemento fundamental. E por que isso? Os autores entendem que o papel fundamental da participação digital está em como ela propicia a criação de híbridos, ou seja, aplicar características típicas de um tipo em outro. A natureza mais flexível dos ambientes digitais permitiria, por exemplo, complementar a seleção de sorteio para um mini-público a partir da autosseleção via plataforma digital; ou prover oportunidades para participantes em referendos não só de votar, mas também de expressar e escutar (ou ler) diferentes opiniões de um problema (ELSTUB, ESCOBAR 2019, p. 27).
Tabela 1: Famílias de inovações democráticas segundo Elstub e Escobar (2019)
Fonte: Elstub e Escobar (2019)
Na prática, podemos observar essa hibridização no portal e-Cidadania do Senado Federal. O portal é uma grande iniciativa que inclui dois tipos de inovação democrática. Em uma seção, chamada “Ideia Legislativa”, o cidadão pode propor e apoiar sugestões e ideias para novas leis, em um formato referente à governança colaborativa proposta por Elstub e Escobar. Já na seção “Consulta Pública”, cidadãos podem votar em proposições que podem se tornar projetos de lei, que podemos relacionar à família dos referendos.
Concluindo, entendo, seguindo Elstub e Escobar, que a democracia digital e a e-participação se configuram melhor como um meio do que como um tipo ou família em si no contexto das inovações democráticas. Reconhecer isso não diminui a relevância dos temas e das iniciativas digitais, mas realça a importância do estudo do meio para entender como inovações democráticas são aplicadas.
Referências
ELSTUB, S.; ESCOBAR, O. Defining and typologising democratic innovations. In: ELSTUB, S.; ESCOBAR, O. (Eds.). . Handbook of Democratic Innovation and Governance. [s.l.] Edward Elgar, 2019. p. 11–31.
SENADO FEDERAL. e-Cidadania. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ecidadania. Acesso em: 15 out. 2021
SMITH, G. Democratic innovations: designing institutions for citizen participation. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.